sexta-feira, 14 de setembro de 2012

O coxo

Chamava-se Sérgio e era coxo. Por ter perna acima perna abaixo ou por puro desmazelo, nunca o soube, dava passadas tropeças e amiúde lá caia uma das asas da sua mochila roxa-desbotada. A horizontalidade dos seus ombros estava para a verticalidade do seu corpo como uma balança de dois pratos está para uma balança com apenas um.
Mas este filhinho de Quasimodo tinha qualquer coisa de interessante. Os meus 8 anos de idade não o conseguiam racionalizar, mas estava apaixonada. E para validar este meu 'élan', a minha amiguinha de carteira também sentia o mesmo. E o tal do Sérgio, como boa criança todavia limpa de preconceitos e regras sociais, estava apaixonado pelas duas e não se coibia de o demonstrar, mandado-nos cartas forradas de corações e de algumas das poucas palavras que já sabia escrever.
É bom lembrar que as palavras que sabia eram realmente as únicas que importavam: "Eu gostu de vossês".

Não estava correcto, afinal de contas, mas o som era o mesmo. E soava para as duas como um coro dos mais puros anjos.
Além de coxo, não sabia escrever, o tonto, mas, ao que parece, quanto mais tonto era, mais bonito se tornava.

Um dia o Sérgio, o coxo, convidou-nos para o seu aniversário. Quando chegámos à sua casa, entre mãos dadas e risos nervosos, a pequena sala jorrava gente: pais, avós, primos e tios, vizinhos e amigos. Mas nada de crianças. Apenas nós, as miúdas, que éramos o seu presente mais precioso, pois os outros apenas teriam vindo numa de lambarice pelos comes-e-bebes:
- Porque o puto faz anos, mas nem sei bem quantos. Oh Sérgio, diz aqui ao tio, fazes quê? 10?
- Não, faço 8... -  dizia envergonhado.

Os primos mais velhos quiseram por-nos a ver o Jurassic Park. Era idealmente medonho para nos aterrorizar. Enfiadas num só sofá, porque naquela altura ainda cabíamos assim juntas num espaço minúsculo, arregalávamos os olhos para logo os fechar, cheias de medo. E o Sérgio, olhava para nós, provavelmente pensando que não estaria esta a ser a melhor festa de aniversário que nos queria oferecer. É que o encanto do coxo era, afinal, esse mesmo: a ternura. E num tom miúdo e inseguro lá lhes disse para tirarem o filme.

- Ah, 'tou a ver que gostas mesmo das miúdas - disse um.
- Mas oh Sérgio, ter duas namoradas não 'tá certo, tu tens de escolher uma - disse o outro.
O bom do rapaz deixou cair os olhos no chão, e entrelaçava os dedos uns nos outros enquanto pensava numa resposta.
- Eu gosto das duas - disse então.
- Oh puto, não, tens de escolher uma! - insistiu.
- Está bem - disse por fim - Escolho a ela - apontando para a minha amiga.

E nesse momento deixei eu cair o meu coração no chão, desfeito em múltiplas gotas. Foi nesse momento que tive o meu coração partido, pela primeira vez. Teria o garoto feita uma escolha lógica por, afinal, haver uma preferência, ou apenas por se sentir pressionado pelos machos-alfa em seu redor, aquele dedinho apontado, ainda que não na minha direcção, tinha-me atingido como um torpedo.
E estava feita a formatação de dados: Gostar? Só de uma.

4 comentários:

  1. Um bom exemplo de como as crianças sabem sempre muito mais que os adultos :)

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    1. Formatação induzida ou formatação «automática»: todas (são)formatações... ;-)

      (Passei a «anónimo», novamente, não aceita que seja Olimpo...LOLOL)

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  2. Ser criado, gerar-se, transformar
    O amor em carne e a carne em amor; nascer
    Respirar, e chorar, e adormecer
    E se nutrir para poder chorar

    Para poder nutrir-se; e despertar
    Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
    E começar a amar e então sorrir
    E então sorrir para poder chorar.

    E crescer, e saber, e ser, e haver
    E perder, e sofrer, e ter horror
    De ser e amar, e se sentir maldito

    E esquecer de tudo ao vir um novo amor
    E viver esse amor até morrer
    E ir conjugar o verbo no infinito...

    Vinicius de Moraes

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