sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Posso fazer alguma coisa para ajudar?

Não.

Há precisamente nove Agostos atrás soube que a definição de 'garantia' só se aplica à morte. Só ela está garantida. Garante-se a si mesma, mas tão pouco nos diz quando chega. Só se sabe que chega.
Dar por garantida a vida e os anos que nos aguardam é um sonho. Dar por garantida a companhia de quem gostamos até ao nosso próprio termo final é um sonho.

Há nove anos atrás também soube que aquilo que albergamos no coração é, muitas vezes, maior ainda do que pensavamos que fosse. Amor. Tão grande. 
- Vá lá, eu até prefiro nunca mais te ver, mas saber-te vivo e feliz. Vá lá, sobrevive, vive. Apenas isso.
Quero que vás para bem longe, que vás para a Austrália!, que nos zanguemos, que deixemos de falar, que se azede a nossa amizade. Não quero saber. Vá lá, sobrevive, vive. Apenas isso. Saber-te vivo e feliz... Apenas isso. 

Soube também que afinal ainda sabia rezar as Avé Marias e os Pais Nossos todos. Descobri que na situação mais extrema, de pânico e dor, qualquer ateu vira crente. Que qualquer besta vira mansa. Que tudo o que valorizamos, deixa de ter valor. E tudo o que desvalorizamos, ganha um valor imenso.

Que raio é isto? De ter de te ver desacordado, ligado a uma máquina para respirares, essa máquina que não são os teus pulmões, essa máquina que não é mais o teu coração? Onde estás? 

Soube também que o mundo desaparece. O mundo que conhecemos desaparece. Uma construção que implode. As pessoas que estão à nossa volta tornam-se invisíveis, os sons tornam-se mudos, as cores tornam-se turvas. O tempo estanca. O espaço... nem sei se existe. 
Mas que o coração que bate, tão forte, ele sim é real. E queremos arrancá-lo. 
Tê-lo-ia arrancado e tê-lo-ia dado a ti. 

Como se pode ser tão generoso, afinal? Eu ter-te-ia dado o meu coração, para que vivesses, mas depois ficava eu sem ele. Não faz sentido. Então depois eu não já não viveria mais e não poderia ver-te viver outra vez...
Mas não se pensa nisso, não há lógica nem razão no amor. É talvez a coisa mais ilógica de sempre, mas a única coisa que nos sustém.

Porém...talvez a morte não seja uma coisa triste. Somos nós que valorizamos demais a vida. Porque não conhecemos outros limites fora deste quadrado. 

Passados nove anos, saltam imagens de coisas que fizemos, aparecem conversas que tivemos e até as que não tivemos. Recrio momentos que nunca aconteceram, entre aqueles que realmente aconteceram.
Acho que ainda me lembro da tua voz, mas não tenho a certeza. Acho que sei como serias hoje, mas também não sei ao certo. Talvez tivesses mesmo ido para a Austrália e talvez nunca mais nos tivessemos falado. 
Não sei porquê desejei que fosses para a Austrália e que nunca mais nos tivessemos falado. Talvez fosse a penitência que eu estaria disposta a pagar como troca, pela tua vida de volta.

Mas gosto de pensar que continuariamos a ser tão amigos como sempre fomos, que continuaríamos a ir ao cinema à meia-noite, que conversariamos sobre livros e filmes, que falariamos sobre as tuas namoradas e sobre os meus namorados. E que, invariavelmente, me continuarias a roubar o comando da televisão e a deixar a casa-de-banho inundada após cada banho teu. E que, sim, as latas de atum eram todas tuas e mais ninguém devia tocar nelas!

Ainda sonho contigo a brincar com os meus filhos. Filhos esses que nem existem. Mas continuo a imaginar como serias como tio. Ainda continuo a imaginar-te com 50 anos e a imaginar-me a mim com 44, a conversar num alpendre, sobre as estrelas.
E então talvez ainda vivas. Porque a cada memória e a cada imagem imaginada, te tornas real.
Passados nove anos, não pesa mais a tua ausência. Acostumamo-nos a ela. Também já não pesa a memória d'aquele dia. Ele é apenas uma referência, de algo que aconteceu, mas que ficou para trás.
Passados nove anos, a única coisa que pesa é saber que a cada dia que passa, o amor se vai apagando, a emoção ficando aguada, e que o coração que eu te teria dado naquele momento... já aprendeu a viver sem ti. 

Ao meu irmão Filipe Luelmo 





   

3 comentários:

  1. Maria Helena Sacadura Simões23 de agosto de 2013 às 11:34

    Gostei muito. Obrigada por me ter mostrado o seu sentir.
    Um grande abraço para a Ana e outro para a mãe.

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  2. Muito, muito, muito, muito bonito. Não há muitos que cheguem para a beleza deste texto. :)

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  3. Muito, muito, muito, muito bonito. Não há muitos que cheguem para a beleza deste texto. :)

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