terça-feira, 23 de junho de 2009

Momentos de absorção

Hoje dei por mim na janela a olhar a rua lá em baixo. Faço isso muitas vezes, mas o que não é habitual é ficar longos minutos a reflectir sobre a temática ‘pedras da calçada’. E desta vez surpreendi-me num absoluto transe, hipnotizada com as formas que entravam pelos meus olhos.
Durante uns minutos viajei pelos contornos das bermas que serpenteiam ao sabor da estrada, passando para a verticalidade dos pináculos que impedem o estacionamento anárquico e pela entrada rectilínea do metro, de onde saía uma luz amarela, qual Nossa Senhora projectando um coluna de brilho no céu. Varri com olhos aquela composição, cheia de quadrados e círculos, curvas e contra curvas, altos e baixos e apercebi-me de como estamos nós habituados a ver a vida a partir da geometria e como já nem nos surpreendemos pelo passeio estar todo retalhado com tampas de esgotos e caixas de electricidade. Só hoje, passados anos, reparei nas três tampas de esgoto, dispostas em triângulo, que estão por baixo da minha janela. E no minuto a seguir, o passeio, de milhares de pedrinhas, já só me parecia uma saia às bolinhas e não mais um passeio.
Mais surpreendente é o facto de andarmos sempre em cima de passeios e estradas e raramente vermos o que de facto é o mundo feito, a terra, e não nos surpreendermos com isso. Ficamos depois surpreendidos por não nos termos surpreendido antes.
Esta tapeçaria faz parte da nossa vida desde que nascemos, os encontros com as esquinas também. Não há ninguém que saia à rua para ir comprar leite que não se depare pelo caminho com vários percursos para chegar a um mesmo ponto e por mais intricada que seja a teia urbana, se no-la tirassem perderíamos o norte.
Depois comecei a imaginar o que seria se os prédios à minha volta não tivessem paredes. Ia ver centenas de pessoas, centenas de vidas em acção, dispostas umas por cima das outras em camadas, porque eu sei que elas lá estão mas, de paredes erguidas, não vejo viv’alma e o bairro parece desabitado. E até gosto dessa tranquilidade ilusória. Habituamo-nos a saber que há pessoas que vivem há anos a 500 metros de nós, mas por existirem essas paredes e essas esquinas, nunca as vimos nem nunca as vamos ver. De facto, só de imaginar que em baixo do meu quarto, com a distância da altura de uma mão de cimento, está a decorrer uma vida, e das poucas vezes que me lembrei disso, é um bom exemplo de como são eficazes as barreiras arquitectónicas.
Entretanto a imagem das milhares de pessoas a bulir dentro das suas casinhas à vista desarmada pareceu-me desagradável. Percebi então que não seria, com certeza, possível viver num mundo onde não houvesse horizonte, onde não houvesse primeiros, segundos e terceiros planos; onde não houvesse o aberto e o fechado, onde não existisse simetria e assimetria, relevos e depressões. Mas a conclusão mais importante que tirei foi de que não seria suportável viver a céu aberto e com uma profundidade de campo indefinida com mais dez mil vizinhos, porque em vez de estar a alucinar saudavelmente com os desenhos da rua, estaria a ver o vizinho do 3ºA do prédio da frente a lavar os dentes ou a senhora do 5ºD do prédio do lado a cortar as unhas e quem sabe outras tantas coisas que felizmente não temos de partilhar com ninguém.
Agora vou dormir, antes disso vou só lavar os dentes e cortar umas unhas. Boa Noite.

1 comentário:

  1. Amanhã quando for para o metro vou reparar nisso tudo e digo te o que senti ;) e vou olhar muito para o chão... não para ver a calçada, mas sim para ver se encontro uma notinha perdida, que a mnha mãe no outro dia encontrou uma de 20 euros e ganhou o dia.
    VG *

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