quarta-feira, 19 de março de 2014

No dia do Pai: ao meu Pai.


Nunca me hei-de esquecer de quem me ensinou a andar de baloiço. Eu com medo ia dando aos pézinhos fazendo o baloiço baloiçar, mas apenas um bocadinho - Paaai, empurraaa! - e o pai empurrava, empurrava, até que deixou de empurrar e quando me dou conta já estava em perfeito balanço, sozinha, enquanto ele apenas observava - uaaau, pai, eu consigo!! - e ele sorria provavelmente pensando - Claro que consegues, tu é que acabas de vir ao mundo e não sabes que isso é apenas uma das coisas mais fáceis que tens a aprender. Aguarda e verás. - Sim, é verdade, foi afinal das coisas mais fáceis de aprender. Tantas outras que ainda tinha pela frente e não sabia. Vai-se ficando a saber.

Depois de bicicleta o mesmo esquema, o pai corria atrás empurrando e amortecendo hipotéticas quedas, até que um dia dou por mim completamente lançada e vi o meu pai sentar-se num banco e abrir o jornal, descontraído - Vá, tu sabes andar sozinha! - gritou lá do fundo. Tinha 4 anos, fiquei aterrorizada! Ia sozinha lançada sobre duas rodas! Mas em poucos segundos enchi-me de orgulho e sem rodinhas extra passei a ser a ciclista mais veloz da praça. Ou assim gostava de pensar.

Também me lembro daquela noite em que me deu uma senhora bofetada porque tinha respondido torto a qualquer coisa (a primeira e última bofetada) para logo a seguir me pegar ao colo e me embalar durante meia hora pedindo desculpas. A bofetada nem doeu assim tanto, mas ficou cheio de remorsos. Eu acabei por ficar com mais pena dele do que ele de mim - Pobre criatura, que raiva é essa que tão rapidamente se transforma em lágrimas de arrependimento? Calma, está tudo bem.

Durante anos levou-me à escola de carro todas as manhãs. Até bastante tarde. Não era por falta de transportes públicos nem por não saber usá-los. Mas ele queria levar-me! E então acordava a horas que não tinha de acordar só para me levar. Assim podiamos conversar enquanto 'comiamos' filas de trânsito.
Adorava quando me dizia que eu tinha tantos talentos que a única hipótese futura era eu tornar-me rica. Estavas tão enganado, pai, mas ainda assim, sabia bem ouvi-lo. E sabe bem recordá-lo.
Gostava quando tínhamos conversas de 'gente para gente' e não de pai para filha. Sentia o meu intelecto respeitado e tão inteligente quanto ele. Dava-me a oportunidade de falar de tudo e com ele aprendi muita coisa. Os vícios paternais de acabar as conversas com alguma espécie de moral ou crítica destrutiva ou pseudo-constructiva - porque tu és minha filha e pensas assim e eu não quero que penses assim. Porque tu és minha filha e eu quero que sejas assado - raramente acontecia. Não, eu podia falar sobre aquilo que realmente pensava e quem respondia, quem concordava ou discordava, não era o pai, mas o humano, o ser pensante.
Mas também havia muito desse pai menos racional principalmente quando me via com algum rapaz - Tu andas com aquele tipo? - Não, pai, é só um amigo - Ah, ainda bem! - Mas porquê, pai? - Porque não gosto do piercing dele! Não me digas que beijas aquilo! - Ah, não sejas mentiroso, tu não queres saber do piercing, tu estás é com ciúmes! Ahah! - Não estou nada... ora essa... humpf...! - Estava pois! 

Sabia bem acordar e ir ao escritório dele onde teclava incessantemente nas suas traduções, abraçá-lo por trás e dar-lhe festinhas na careca todas as manhãs. Não dizia nada, apenas sorria. E continuava no 'clep clep clep clep'. Sentia tanto orgulho em dizer - O meu pai sabe 6 línguas. Faz traduções de Sueco e tudo, imaginem só! - Mas continuo a repeti-lo até hoje.

Foi estranho quando me pediu desculpas por ser um pai semi-presente-semi-ausente. Nunca entendi. Sempre o senti tão presente e preocupado, nunca ausente. Talvez se referisse aos momentos em que deixava a sua mente viajar para outros mundos. Mas isso todos nós fazemos, pai. Todos nós viajamos de vez em quando para distantes paradas.

De ti herdei estes olhos pequeninos que durante muitos anos odiei. Queria-os maiores! Agora gosto deles. São iguais aos teus. Também herdei este gosto pela escrita e pela linguística, embora não ouse sequer pôr-me no mesmo patamar da tua sabedoria.
Contigo aprendi as capitais todas do mundo. Lembras-te? Quando íamos no carro e me perguntavas as capitais e eu tinha-as todas na ponta-da-língua. Hoje já me esqueci de metade...
Também gostava de discutir contigo sobre o Início dos Tempos, sobre a formação da Pangeia, ou sobre que raio era afinal essa Pangeia; sobre as religiões do mundo e sobre as mais variadas hipóteses sobre as quais um agnóstico gosta de divagar. Sobre Deus ou esse Não-Deus. 

Agradeço por me teres deixado uma carta. "Querida Anuska". Ainda hoje a tenho guardada. Certo que falaste em todos os outros membros da família nessa carta, mas foi a mim que deixaste uma carta. Foi comigo que quiseste partilhar as tuas dores mais profundas e os teus desejos para o nosso futuro. Foi comigo que quiseste falar dos teus defeitos, das coisas que mais detestavas em ti e mostrar o quanto não querias que eu te seguisse as pisadas nesses aspectos. Porque eu sou tão parecida contigo, não é? Tu sabias disso. Foi a mim que quiseste explicar o quanto era importante para ti ter o poder da escolha, entre ficar ou ir embora. E pediste perdão, mas lá seguiste com a tua teimosia que desde cedo compartilhaste - Não escolhi nascer, tenho direito a escolher quando morrer.
Perdoei a tua vontade de querer ser livre...finalmente livre. Se não te amasse tanto, teria querido que tivesses permanecido comigo, mesmo sofrendo. Mas amava-te demais para tamanho egoísmo.
Mas também senti raiva porque eras a minha coluna vertebral, a minha estante com milhares de livros, o amor da minha vida. Perdi o pai, o chão e centenas de livros quando te foste embora. E pensei que não recuperaria jamais a vontade de continuar a viver. E pensei que me tornaria tão estúpida porque havia perdido o meu melhor professor.
Mas tu sabias, pois, que eu ia conseguir continuar a baloiçar sozinha, em alta velocidade, mesmo que no início tenha sido difícil dar o primeiro balanço. Sabias que eu ia conseguir. Como soubeste sempre quando largar o meu baloiço ou a minha bicicleta e deixar-me continuar sem ti.