terça-feira, 18 de setembro de 2018

As Serenas pouco serenas

Cresci numa ignorância feliz.
Durante anos não soube o que era a descriminação de género. Vim a saber através de filmes e da História, mas que contavam ritos de passados longínquos, como o era o Holocausto - longínquo para mim. Não era contemporâneo. Nunca iria chatear-me com isso.
Jamais em minha casa houve o determinismo de que os rapazes faziam umas coisas e as raparigas faziam outras. E jamais me foi dito que um género valia mais para a sociedade em detrimento do outro.
A minha avó teve a felicidade de me pedir um dia para ir fazer as camas dos meus irmãos - porque era isso que as meninas faziam. Eu devia ter 7 anos, lancei-lhe um ar de absoluto espanto. E digo que foi um evento feliz porque me deu um enorme prazer dizer-lhe Não. E também ela aprendeu, porque nunca mais o fez.
Tirando esse evento, não conhecia a descriminação na pele, os meus pais tratavam-nos da mesma maneira, ensinavam-nos as mesmas coisas e brincavam connosco de forma indistinta. Claro que sabia que eu era menina e que eles eram meninos, havia detalhes que saltavam à vista! E não, nem sempre simpatizava com as brincadeiras de cowboys e dinossauros - eram brutos, não tinha graça. Preferia inventar as minhas próprias brincadeiras e divertia-me mais sozinha do que com eles. Mas encontrei a minha identidade sem ninguém me forçar a uma. Foi espontâneo. Ainda que admita a existência de várias referências sublimares distintivas por todo o lado - nos desenhos animados, nas roupas e nos brinquedos - mas que em nada me condenavam à inferioridade.
Por incrível que pareça, só há poucos anos me apercebi que a descriminação de género ainda existe. Disfarçada, dissimulada, atrás da nuca para muitos, mas existe. E seria difícil não dar conta disso, sendo que agora há todo um rodopio de movimentos feministas, uns mais passivos e outros mais agressivos.
A verdade é que sempre me dei bem com as diferenças. Sempre as vi como dotes da natureza e complementares entre os pares. A força dos meus irmãos era-me útil, podiam proteger-me, o meu interesse pelo detalhe era-lhes útil, podia ajudá-los na organização das suas coisas. E esta é uma conjugação belíssima e feliz, quando não deturpada por egos inflamados, sedentos de um sentimento de superioridade. Ainda hoje penso que a força dos homens devia ser uma vantagem a nosso favor, mas infelizmente vê-se muito o contrário.
Foi-me complicado aceitar o conceito da diferença porque, apraz-me dizer, frequentei várias turmas onde os alunos que se distinguiam, e nas mais variadas disciplinas, eram...meninas. A Susana era o ás da matemática, tirava sempre 100%, a Rita escrevia textos de vergar qualquer editora, a Filipa saltava e corria que nem uma lebre, a Sara era praticamente bilingue e era excelente a inglês. E eu era feliz por me distinguir nas artes plásticas.
Havia, sim, dois ou três meninos que também tiravam bons resultados, mas que vinham atrás da Susana, da Rita, da Filipa e da Sara....sempre. Mas nunca me passou pela cabeça que as meninas eram mais espertas, sabia que os meninos também o eram. Simplesmente tinha calhado em turmas ricas em meninas espertas e que os meninos espertos talvez estivessem noutro lado.
Qual o meu espanto, hoje, ao ouvir declarações de um tal deputado polaco que diz que as mulheres merecem ganhar menos porque são claramente mais burras. E a Susana? E a Rita? E a Filipa? E a Sara? Onde ficam estas maravilhas? São milagres da natureza? Um contra-natura? E....merecem ganhar menos ainda assim?
Um dos comentários infelizes que mais se ouve por aí é o célebre - "Mas as personalidades mais famosas são homens." - Sim, são. O Da Vinci, o Mozart, o Newton, o Hemingway, o Jamie Oliver (na actualidade), e tantos outros. Sim, são. São mais conhecidos porque produziram mais, são mais conhecidos pelos suas criações, invenções, descobertas e trabalho. Sim.... Mas se este comentário viesse de alguém verdadeiramente conhecedor, saberia que Da Vinci nasceu no século XV, Mozart nasceu no século XVI, quando quase ninguém tinha acesso às escolaridade, e quem tinha era homem. Às mulheres não lhes era permitido estudar nem formar-se. Às mulheres era-lhes forçada uma vida doméstica, de reclusão e dedicada à família. E qualquer mulher que se insurgisse contra isso, era histérica ou louca. Mas há muita obra concretizada por mulheres, apenas assinada com um pseudónimo masculino. E ainda hoje isso acontece - a J. K. Rowling nunca assinou como Joanne K. Rowling justamente para não influenciar a massa. Era deixá-los pensar que se tratava de um Jack ou de um John. E vendeu... oh se vendeu!
O Jamie Oliver, de quem eu tenho montes de livros, tem 5 filhos. Gosto muito do trabalho dele, mas tenho a certeza que quem ficou a cuidar dos 5 filhos foi a mulher, sendo-lhe diminuida enormemente a possibilidade de ter uma carreira tão iluminada como o a do marido. E bem haja, porque mais vale cuidar dos filhos que ter uma estrela Michelin.
Mas não ficamos por aqui. Há dias dei de caras com outro comentário infeliz - "O mundo é e sempre foi regulado pela nossa opinião e acabou". Deu-me vontade de lhe dizer - Qual opinião? Uma opinião de merda? É que a tua é uma merda, caríssimo. Se formos sempre regulados por opiniões de merda, estamos bem fodidos.
Sim, sou mulher e tenho direito a escrever palavrões.
O mundo também foi regulado por esclavagistas durante séculos. Hoje a maioria tem vergonha desse passado.
De qualquer forma, o feminismo tem o dever de ser inteligente e justo. Mulheres que não admitem a intervenção de um homem em qualquer que seja o assunto, acusando-os logo de estarem a ser paternalistas - porque ninguém lhes pediu uma opinião e, portanto, é desnecessária e tem um peso condescendente - mulheres que não aceitam ser chamadas à atenção por um homem porque trazem sempre 'água no bico' e estão a ser sexistas, mulheres que abominam qualquer elogio, conotando-o logo de assédio, soa-me à velha máxima de culpar todos os alemães pelo Holocausto. Vá lá, nem todos os homens são umas bestas.
Ainda assim, protegendo todos aqueles que também nos protegem e amam, é necessário dizer:
Vocês já foram ouvidos por muito tempo, deixem-nos falar agora.
A Serena talvez não tenha tido razão naquele momento, mas saltou-lhe a tampa por tanto outros.