Os meninos e meninas nascidos nas décadas de 80 e 90 foram chamados de geração rasca.
Confesso que fui procurar pelo significado e origem desta expressão e não encontrei grande coisa. Posso portanto apenas fazer a minha interpretação pessoal e dar-lhe eu um significado.
Somos os meninos que cresceram com tudo (ou quase tudo), em famílias de 2 a 4 irmãos, porque ainda era possível ter mais que um filho ou, melhor dizendo, era normal ter-se filhos, ponto.
Somos os meninos que cresceram com bicicletas, leitores de cassetes e cd's, brinquedos playmobil, barbies, casinhas de bonecas e carrinhos telecomandados. Fomos habituados a ver as arvores de Natal a fazer sombra a mais de dez presentes para cada filho e as mesas cheias de comida.
Somos os meninos que puderam frequentar não só o ensino tradicional, mas também ter uma data de outras actividades extra-curriculares - aprender um instrumento musical, fazer um desporto, etc.
Em suma, fomos a geração mal-habituada a um fartote de coisas e como consequência somos a geração que mais expectativas criou em relação ao futuro e que agora entope os consultórios de psiquiatria e acaba com os stocks de anti-depressivos. E isto porque não sabemos como abrir mão das construções mentais que fizemos ao longo dos anos e tudo parece negro se não concretizarmos os nossos sonhos de criança.
Talvez venha daqui a expressão 'geração rasca' - os meninos das mamãs e papás que acordavam cedo para se irem refastelar no sofá a ver desenhos-animados, comendo um bando de porcarias, sem demais preocupações. E as tarefas que nos eram atribuídas eram as de arrumar o quarto, fazer os trabalhos de casa e pouco mais.
Era fácil, no entanto, entrar em espirais de crises existencialistas porque tínhamos tempo de sobra para isso, já que nenhum de nós teve de começar a trabalhar aos 8 ou 12 anos de idade e os papás a nós de um tudo providenciavam, mas quem não teve crises existencialistas na infância ou na adolescência não as terá vivido de facto. Foi-nos dada essa hipótese, pelo menos, de viver infâncias e adolescências 'normais'. Ainda que o termo 'normal' soe sempre a anormalidade, já que não deixa de ser um termo bastante abstracto e vago, susceptível a inúmeras interpretações.
Mas foi-nos dada, sim, a possibilidade de crescermos felizes e completamente absortos em fantasias.
E hoje estamos à rasca. E estamos à rasca não apenas porque não nos é garantido um trabalho, depois de tantos anos de estudo, mas por tudo o que esse detalhe comporta. Porque nos vão chacinando todos os sonhos e expectativas que foram crescendo connosco, tais como o de ter uma família, casar, ter filhos, viajar, ter casa e carro próprios.
Porque fomos mal-habituados. Porque crescemos com irmãos e sonhámos um dia ter filhos. Este era um quadro normal ao qual nos acostumámos. Porque vivemos em casas que foram sendo facilmente pagas aos bancos, porque havia emprego e os nossos pais podiam pagá-las e assim sonhámos vir a ter a nossa própria casa - este era outro quadro normal ao qual nos acostumámos. Porque vimos os adultos a trabalhar e a construir carreiras e assim sonhámos também nós vir a ter uma - porque não? Se somos a geração melhor preparada e com mais conhecimento? Claro que vamos ter empregos e carreiras e seremos independentes. Ou pelo menos assim pensávamos.
E o centro da problemática está aí mesmo, nas expectativas que criámos, mas que agora assistimos com incredulidade serem afundadas por enormes ice-bergs posicionados estratégicamente para provocar a catástrofe. Mas estratégias essas que nos passaram ao lado porque estávamos muito mais ocupados a sonhar com possíveis contos de fadas que a imaginar possíveis tragédias. Penso que o Walt Disney também terá a sua quota parte de culpa no assunto.
Mas quando digo que fomos mal-habituados, não deposito a culpa em ninguém. A realidade é que ninguém previa que o que está a acontecer agora iria acontecer. Poderiam pensá-lo, imaginá-lo, mas nunca realmente prevê-lo. Só talvez os mais visionários ou quizás os mais inteligentes e entendidos em matérias históricas, cientes de que qualquer império ou sistema acaba sempre por falhar, mais dia menos dia.
Falamos não sei quantos idiomas, dominamos não sei quantos programas informáticos, tocamos instrumentos musicais, fazemos o pino, a cambalhota, dançamos o tango. Concluindo: fomos treinados para viver. Mas conhecimento é uma mais valia, que além de não ocupar espaço, ainda nos proporciona grandes conversas de café e pézinhos de dança nas discotecas do Cais do Sodré. Mas não fomos treinados para sobreviver.
Dou-vos a metáfora do cão acostumado a dormir no sofá e a comer ração Pedigree. Esse cão tem uma vida fantástica, mas no dia em que é largado na rua não se safará como qualquer outro cão não domesticado. Não saberá onde se escondem os ratos, não saberá onde procurar água e se comer restos dos caixotes do lixo terá uma contorção no estomago que o matará, porque nunca seu estomago recebeu outra comida que não a de supermercado. Terá medo dos camiões e dos autocarros, fugirá de objectos estranhos posicionados no meio do passeio e acabará por ser atropelado por um qualquer corredor das estradas.
Nós somos os meninos educados com enciclopédias 'Círculo de Leitores' e alimentados à boca num 'aqui vai o aviãozinho', e que hoje não sabemos o que fazer quando largados no mundo real onde as oportunidades são cada vez mais escassas e ainda que as haja, não fazem o nosso perfil - "É que eu estudei tanto para isto... não consigo candidatar-me àquilo".
Mas mesmo aqueles que se candidatam até para lavar escadas, ainda que com dez certificados de habilitação no bucho, são rejeitados exactamente por causa de todos essas habilitações.
Assistimos a este paradoxo incrível de não nos serem dadas oportunidades na nossa área de estudo por não termos experiência suficiente nos nossos currículos e por não haver vagas para todos (mas se não a temos é porque esta não nos é dada) e de não nos serem dadas oportunidades em outro qualquer tipo de trabalho porque não é a nossa área de estudo. Afinal em quê que ficamos?
Aos 30 anos ainda somos demasiado jovens para sair de casa e constituir familia, porque não temos emprego. Os que agora têm 40 anos são velhos demais porque já são considerados inválidos para recomeçar seja o que for. Mas esta última já é outra geração, com seus problemas específicos que não os mencionados em cima.
E tudo me parece simples quando me dou a mim mesma a oportunidade de relaxar e pensar que ter o que comer e onde dormir já é bom demais considerando outros cantos do mundo onde explodem guerras e povos inteiros são subjugados à sub-nutrição permanente. Podemos afinal considerar-nos afortunados por termos pais que ainda nos sustentam, termos um tecto em cima da cabeça e um frigorífico parcialmente preenchido. E de ter acesso fácil à informação e de nos podermos considerar pessoas instruídas, de alma alimentada, que nos afasta de preconceitos ignóbeis, podendo assim viver num país de bandeira branca hasteada.
O grande-senão é termos sonhado com muito mais que um estomago nutrido e uma cama confortável. 'Muito-mais' esse que se transfigurou numa expectativa frustrada.
Deve doer muito ter um estomago vazio, mas qual é a medida usada para medir a dor da alma? Essa alma alimentada por Walt Disneys e sonhos de futuros promissores, com filhos, casas e carreiras nos nossos empregos de sonho?
Lá teremos de nos subjugar à realidade e finalmente aprendermos o significado da palavra 'adaptação'. E aquele que se adaptar, poderá ele auto-nomear-se como vencedor.
Olá Ana
ResponderEliminarMais um dos seus escritos que gostei de ler. Há vários que não comento por uma simples razão. Amuei. É verdade, há alguns meses comentei um dos seu desabafos, respondendo-lhe no mesmo tom. Leia-se, forma, estilo, conteúdo. Até voltei a trás e li o que escrevi e achei que para a minha idade estava muito giro. Há aqueles que os meninos escrevem e as mamãs guardam, e os outros que já a ninguém lhes toca.
Pois bem, se amuei foi por mea culpa, mea culpa. É que como a idade não perdoa, seja para cima, seja para baixo, esqueci-me de "publicar" e assim ficou só para mim. Paciência! Agora posso dizer que estava muito bem escrito que ninguém me pode contrariar! Atrevam-se!... Estava bem, e pronto.
Mas este palavreado todo para dizer que gostei de ler o "outro lado". É que senhores com mais ou menos idade, de aquela época, papás de então, já muito têm escrito sobre a geração rasca, culpando-se ou aliviando-se.
Gostei dos seus comentários, é um sentir em carne própria.
Como facilmente se sabe sou da geração das guerras: da espanhola e da que embrulhou muitos mais. Filha dos pais da outra grande crise.
E chego à conclusão, já muitas vezes dita, que os pais pensam proteger os filhos dando-lhe tudo o que podem, para que tenham melhor do que tiveram. E lá veem os arrependimentos! Duns, e as culpas dos outros. Não podemos voltar.
Mas será que aprendemos? É que outras gerações
se seguem à tão falada e mal dita,não maldita, geração rasca.
Bem Ana, ainda a acordo já que a esta hora deve estar a dormir sobre o seu escrito, ou então adormeço-a de há tanto estar acordada.
Beijinhos da sua amiga "mayor", espanholamente falando,
Só espero que não tenha amuado comigo! :) E pode sempre tentar rescrever o que tinha escrito... porque agora eu fiquei curiosa!
ResponderEliminarQuanto a este texto em específico.. Pois bem, é um retrato da minha geração e apenas da minha geração (ainda que faça uma generalização, porque nem todos crescemos exactamente da mesma forma). Mas já entendi que a crise, em todas as suas multiplas dimensões - económica e espiritual - é transversal a todas as gerações. Umas sofreram com umas coisas, outras sofreram com outras, e a minha está a sofrer com o que já sabemos.
Acho que não devemos culpar realmente ninguém, mas fazer uma analise de consciência e reparar aquilo que não está bem. E tentar não repeti-la com gerações futuras. Mas será que depois não virão outros problemas provenientes dessa mesma educação que estaremos nós a pensar ser, finalmente, a melhor de todas? Acho difícil chegarmos a um consenso absoluto, a verdades absolutas...
Se por um lado me critico a minha geração por ter criado demasiadas expectativas (e indirectamente os pais que não nos 'protegeram' protegendo-nos demasiado), por outro também não sei até que ponto será possível vivermos uma vida sem objectivos e sonhos. Viver o presente é importante, mas ter um foco no futuro também o é.
Ainda não sei exactamente o que fazer para ultrapassar a decepção de ter chegado à conclusão que muito provavelmente não terei a vida que sonhei, só sei que teremos de nos adaptar e continuar a retirar proveito da vida. Pois afinal tantas outras gerações passaram por guerras e calamidades, e a humanidade não acabou... que será de nós se não formos tão ou mais bravos que os nossos antecessores? Seremos uma vergonha, suponho.