quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Filipe

Filipe, que significa "amigo dos cavalos", "o que gosta de cavalos", do grego Phílippos, composto pela união dos elementos phílos, que significa "amigo" e híppos, que quer dizer "cavalo".

Há muitas pessoas com o nome Filipe e que nem por isso são amigas de cavalos. Talvez porque nunca lhes deram um, não sei. Eu sou Ana e também gosto de cavalos. E também me podem dar um. Ponho-o na varanda.
Enfim, a origem do nome não tem muita importância, porque tenho a certeza que ao meu irmão não foi dado o nome Filipe por causa de cavalos. E este texto é sobre o meu irmão e jamais sobre cavalos. Acho eu... 
Aos meus mais habituais leitores, não preciso pedir perdão pela repetição. Saberão, tão bem quanto eu, a importância de preservar a memória e até a melancolia e resignação pelas coisas que nunca vão mudar. 
Existindo, ou não, uma continuação da alma que segue caminho rumo a novas vidas, quiçá mais frutíferas, ele faz falta nesta. Na minha, e em muitas outras. Até nas vidas daqueles que nunca o conheceram. Pelo menos daqueles que já se cansaram de me ouvir falar sobre ele sem a possibilidade de o ver. 

Estive a fazer um exercício de recreação - imaginei-o no meu ultimo aniversário, com vontade de beber, com vontade de contestar, com vontade de pertencer ao mundo de todos. Imaginei-o a dançar comigo, a pegar-me ao colo e a dar-me carolos. Imaginei-o com calças de ganga largas e casaco castanho, não sei porquê. Imaginei-o com um copo na mão, a falar comigo e com o Daniel, um não-fumador e o outro a fazer bolas de fumo. Imaginei-os aos dois a rir. Imaginei-os aos dois absolutamente firmes em todas as diferenças que tinham e igualmente firmes no amor que sentiam um pelo outro, e por mim. E quis tirar uma fotografia. Queria tanto ter tirado essa fotografia. Queria tanto ter publicado qualquer coisa como "very proud sister of two", assim muito pouco na língua de Camões, mas mais na língua universal. Queria esse cliché. Mas parecendo cliché, eles eram absolutamente exclusivos para mim. Eram e são.

Há quem diga que família são aqueles que escolhemos. Interessante, eu escolheria exatamente a que recebi. Não por serem magnanimamente fantásticos, mas por serem aqueles que sempre senti como meus, inteiramente meus. E existe qualquer coisa de petulante naquilo que é tido como nosso, e os meus irmãos são os melhores, mesmo sendo pessoas extraordinariamente comuns.

Já lá vão demasiados anos a tentar envelhecê-lo, mas sem sucesso. Vejo-o sempre da mesma forma, sem rugas e sem barriga. Imagino-o sem cabelo, sim, mas isso já era habitual. Aliás, era eu quem lho rapava. Um dia fiz-lhe um lanho, mas ele nem se queixou, "Está óptimo!", e lá ia ele comprar 'A Bola' ou fazer 'uma sande d'atuuuum' para acompanhar. Ficava eu a saber e o resto dos vizinhos também, porque fazia questão de gritar. 
Num cômputo geral, era um tipo desalinhado, impulsivo e a vários kilómetros à hora. Quando tinha noção de certas regras de etiqueta, era quando fazia pior. Não consigo contar as vezes que tive de lhe dar cotoveladas para se calar ou para se compor. (Aquela piada sobre as brasileiras, Filipe, em frente aos nosso primos brasileiros, Filipe...)
Embora tenha pedido, mais tarde, conselhos à mãe porque queria 'fazer parte do clã' e comportar-se como qualquer outra pessoa tida como 'normal', acho que encontrou seus semelhantes e foi feliz antes de se 'normalizar'. A vida e a inteligência superam qualquer vestígio de formatação.

E, na realidade, é de um 'louco' que todas as famílias precisam. Ainda que, pensando melhor, ele não era louco, era apenas muito jovem.
E são as coisas mais estúpidas que nos vamos lembrando, são coisas pouco poéticas, pouco intelectualizadas, apenas coisas, apenas momentos, mas que ressoam por anos como grandes narrativas. 
E não existe cavalo nenhum nesta história. Até seria giro haver um cavalo! Mas existe o amigo. Porque só um amigo diria "Se não fosses minha irmã, apaixonava-me por ti". E esta foi a última coisa que ele me disse. Pelo menos de forma direta, porque ainda me foi devolvido um livro, quase tido como perdido, dizendo "Este livro só poderia voltar para ti. Ele gostava tanto de ti". E são estas coisas que vamos alinhado numa lista que pregamos na parede da mente e que nos lembram que, apesar de tudo, somos especiais para alguém. E que, apesar de tudo, só o pó nos separa, mas nunca a sinergia, aquele momento em que o todo é maior que a soma das partes.

E talvez me continue a dizer outras coisas, mas demorámos tanto tempo a conseguir sinal satélite!, será que devemos esperar conseguir outros sinais agora? Demorámos tantos anos a depurar tantas técnicas e sabedorias, haveríamos de ter, já, canal aberto com o maior dos Mistérios? A nossa avó diria que a verdade já está em nós, afirmação muito cristã, mas pouco satisfatória. 

Agora, inevitavelmente, imagino-o com cavalos. Calças de ganga, casaco castanho, com um copo na mão, a lidar com cavalos. Não faz sentido? É um cowboy! 

Signed: very proud sister of a cowboy. No, not one, two! 



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