terça-feira, 18 de setembro de 2018

As Serenas pouco serenas

Cresci numa ignorância feliz.
Durante anos não soube o que era a descriminação de género. Vim a saber através de filmes e da História, mas que contavam ritos de passados longínquos, como o era o Holocausto - longínquo para mim. Não era contemporâneo. Nunca iria chatear-me com isso.
Jamais em minha casa houve o determinismo de que os rapazes faziam umas coisas e as raparigas faziam outras. E jamais me foi dito que um género valia mais para a sociedade em detrimento do outro.
A minha avó teve a felicidade de me pedir um dia para ir fazer as camas dos meus irmãos - porque era isso que as meninas faziam. Eu devia ter 7 anos, lancei-lhe um ar de absoluto espanto. E digo que foi um evento feliz porque me deu um enorme prazer dizer-lhe Não. E também ela aprendeu, porque nunca mais o fez.
Tirando esse evento, não conhecia a descriminação na pele, os meus pais tratavam-nos da mesma maneira, ensinavam-nos as mesmas coisas e brincavam connosco de forma indistinta. Claro que sabia que eu era menina e que eles eram meninos, havia detalhes que saltavam à vista! E não, nem sempre simpatizava com as brincadeiras de cowboys e dinossauros - eram brutos, não tinha graça. Preferia inventar as minhas próprias brincadeiras e divertia-me mais sozinha do que com eles. Mas encontrei a minha identidade sem ninguém me forçar a uma. Foi espontâneo. Ainda que admita a existência de várias referências sublimares distintivas por todo o lado - nos desenhos animados, nas roupas e nos brinquedos - mas que em nada me condenavam à inferioridade.
Por incrível que pareça, só há poucos anos me apercebi que a descriminação de género ainda existe. Disfarçada, dissimulada, atrás da nuca para muitos, mas existe. E seria difícil não dar conta disso, sendo que agora há todo um rodopio de movimentos feministas, uns mais passivos e outros mais agressivos.
A verdade é que sempre me dei bem com as diferenças. Sempre as vi como dotes da natureza e complementares entre os pares. A força dos meus irmãos era-me útil, podiam proteger-me, o meu interesse pelo detalhe era-lhes útil, podia ajudá-los na organização das suas coisas. E esta é uma conjugação belíssima e feliz, quando não deturpada por egos inflamados, sedentos de um sentimento de superioridade. Ainda hoje penso que a força dos homens devia ser uma vantagem a nosso favor, mas infelizmente vê-se muito o contrário.
Foi-me complicado aceitar o conceito da diferença porque, apraz-me dizer, frequentei várias turmas onde os alunos que se distinguiam, e nas mais variadas disciplinas, eram...meninas. A Susana era o ás da matemática, tirava sempre 100%, a Rita escrevia textos de vergar qualquer editora, a Filipa saltava e corria que nem uma lebre, a Sara era praticamente bilingue e era excelente a inglês. E eu era feliz por me distinguir nas artes plásticas.
Havia, sim, dois ou três meninos que também tiravam bons resultados, mas que vinham atrás da Susana, da Rita, da Filipa e da Sara....sempre. Mas nunca me passou pela cabeça que as meninas eram mais espertas, sabia que os meninos também o eram. Simplesmente tinha calhado em turmas ricas em meninas espertas e que os meninos espertos talvez estivessem noutro lado.
Qual o meu espanto, hoje, ao ouvir declarações de um tal deputado polaco que diz que as mulheres merecem ganhar menos porque são claramente mais burras. E a Susana? E a Rita? E a Filipa? E a Sara? Onde ficam estas maravilhas? São milagres da natureza? Um contra-natura? E....merecem ganhar menos ainda assim?
Um dos comentários infelizes que mais se ouve por aí é o célebre - "Mas as personalidades mais famosas são homens." - Sim, são. O Da Vinci, o Mozart, o Newton, o Hemingway, o Jamie Oliver (na actualidade), e tantos outros. Sim, são. São mais conhecidos porque produziram mais, são mais conhecidos pelos suas criações, invenções, descobertas e trabalho. Sim.... Mas se este comentário viesse de alguém verdadeiramente conhecedor, saberia que Da Vinci nasceu no século XV, Mozart nasceu no século XVI, quando quase ninguém tinha acesso às escolaridade, e quem tinha era homem. Às mulheres não lhes era permitido estudar nem formar-se. Às mulheres era-lhes forçada uma vida doméstica, de reclusão e dedicada à família. E qualquer mulher que se insurgisse contra isso, era histérica ou louca. Mas há muita obra concretizada por mulheres, apenas assinada com um pseudónimo masculino. E ainda hoje isso acontece - a J. K. Rowling nunca assinou como Joanne K. Rowling justamente para não influenciar a massa. Era deixá-los pensar que se tratava de um Jack ou de um John. E vendeu... oh se vendeu!
O Jamie Oliver, de quem eu tenho montes de livros, tem 5 filhos. Gosto muito do trabalho dele, mas tenho a certeza que quem ficou a cuidar dos 5 filhos foi a mulher, sendo-lhe diminuida enormemente a possibilidade de ter uma carreira tão iluminada como o a do marido. E bem haja, porque mais vale cuidar dos filhos que ter uma estrela Michelin.
Mas não ficamos por aqui. Há dias dei de caras com outro comentário infeliz - "O mundo é e sempre foi regulado pela nossa opinião e acabou". Deu-me vontade de lhe dizer - Qual opinião? Uma opinião de merda? É que a tua é uma merda, caríssimo. Se formos sempre regulados por opiniões de merda, estamos bem fodidos.
Sim, sou mulher e tenho direito a escrever palavrões.
O mundo também foi regulado por esclavagistas durante séculos. Hoje a maioria tem vergonha desse passado.
De qualquer forma, o feminismo tem o dever de ser inteligente e justo. Mulheres que não admitem a intervenção de um homem em qualquer que seja o assunto, acusando-os logo de estarem a ser paternalistas - porque ninguém lhes pediu uma opinião e, portanto, é desnecessária e tem um peso condescendente - mulheres que não aceitam ser chamadas à atenção por um homem porque trazem sempre 'água no bico' e estão a ser sexistas, mulheres que abominam qualquer elogio, conotando-o logo de assédio, soa-me à velha máxima de culpar todos os alemães pelo Holocausto. Vá lá, nem todos os homens são umas bestas.
Ainda assim, protegendo todos aqueles que também nos protegem e amam, é necessário dizer:
Vocês já foram ouvidos por muito tempo, deixem-nos falar agora.
A Serena talvez não tenha tido razão naquele momento, mas saltou-lhe a tampa por tanto outros.




sábado, 20 de janeiro de 2018

Os Velhos

Os Velhos. Os Velhos não são necessariamente pessoas de 90 anos ou 100. Às vezes têm 20 ou 30.
Os Velhos são aqueles que insistem em perpetuar convicções retrogradas. Os Velhos são aqueles cujos ideais românticos já nasceram embaçados, por obra de uma qualquer circunstância, e foram continuamente desfocando. E essa miopia chegará a um ponto que já não progride, mas também não regredirá jamais.
Estamos cheios deles por aí. A malta do "No meu tempo..." - qual tempo? Ainda ias a tempo deste tempo! Só que não...
Todos temos um bocado de velhos, sim, somos todos um bocado velhos às vezes. Mas estes velhos ranzinzas, os que o são o tempo todo sem misericórdia, não sou eu, nem tu que estás a ler o texto. Provavelmente não!
São os compadres e as comadres que continuam a achar que o lugar da mulher é na cozinha. São esses que dizem que a função feminina é servir pão com mortadela e cerveja, enquanto o macho vê o jogo da bola. E que buscam incessantemente pequenas falhas nuns e outros para dizer "Os homens não devem fazer 'isto'...as mulheres não devem fazer 'aquilo'", num acto determinantemente derrotista.
São os compadres e comadres que continuam a tratar os animais como objectos, pedaços de qualquer coisa sem nervos e emoção, cá postos para serem pontapeados e lancetados, seja para comer ou para diversão. Esses velhos nojentos que se acham sobranceiros e donos da vida alheia, sem qualquer reflexão.
São os compadres e comadres que passam à frente de tudo e todos, ora porque são estúpidos, ora porque são realmente velhos e abusam dos seus direitos à prioridade (o que vai dar ao mesmo), sem dizer "Com licença" ou "Desculpe" e ainda te olham com desdém.
São como aquela senhora que quase me deu um safanão para me passar à frente na fila do autocarro (e se não estou em erro, devia ser mais nova que a minha mãe!), não fosse alguém reparar que ela podia ir perfeitamente em pé.
São como aquele senhor que abanou a cabeça e disse "que porcaria", quando recusei um saco de plástico que a menina da caixa me queria impingir para pôr dois limões. "Vai sujar tudo!".
Sim, é sabido que a casca de limão vai deixando uma gosma pelo caminho, e que é quase tão tóxica como os grunhidos do Velho. E até aposto que este Velho, que acha que os limões vão sujar alguma coisa, atirará o mal-dito saco de plástico pela janela do carro fora, apesar de ser uma pessoa asseadíssima.
Os Velhos são estes gajos e gajas que não se deixam """corromper""" por nada que seja novo e diferente do habitual, que vêm sujidade e o diabo em tudo.
São os tipos que elegem Trumps, são os tipos que dizem barbaridades como - "Ponham os refugiados a limpar as matas!" - como se ser-se refugiado fosse um crime, como se ser-se refugiado já não fosse mau o suficiente.
Os Velhos são patriarcais, sejam homens ou mulheres. Tendem a ver o homem como hierarquicamente mais forte e mais sábio. Até porque Deus também é homem. E já agora branco! Não lhes estraguem a pintura...
Também costumam achar que meninos não vão para o ballet (ou viram gays) e meninas não brincam com carrinhos. Mas podem bater nos outros à vontade, que é assim que impõem o seu respeito.
Infelizmente, estes Velhos são uma Instituição fortíssima, nunca acaba e está sempre a produzir mais Velhos.
Um dia gostava de dizer que este país não é para Velhos, citando o título do famoso filme, para também eu me sentir mais nova...








segunda-feira, 6 de março de 2017

A geração sem geração

Foi preciso fazer 31 anos para sentir que tinha entrado na casa dos 30. É que fazer 30 é só o prelúdio, começando pela nossa festa de aniversário e consequente ressaca descomunal de uma semana, seguida por todas as festas de aniversário dos restantes amigos que também fizeram 30 pelo ano fora e que, obviamente, fizeram festões e se desgraçaram monumentalmente....uff, não tive muito tempo para perceber que tinha entrado nos 30. Foram demasiadas celebrações por estarmos vivos há 30 anos ou pelo o número 30 ter alguma graça - talvez por acharmos que começamos a ser considerados mais gente, mas ainda não temos muitas rugas nem joanetes - porque de resto não tem graça nenhuma, e estamos longe de sermos gente.

Porque os 30 anos em 2017 não são os mesmos 30 de há vagamente duas ou três décadas atrás. Nem preciso ir mais longe que isso. Ter 30 anos em 2017 é como ter 10 anos. São ainda mais imbecis, até, que os 5 anos dos nossos pais.
É certo que sabemos fazer muitas coisas que eles não saberiam, nomeadamente fazer um perfil de Facebook e ter seguidores no Instagram, assim como sabemos que os frutos vermelhos são anti-oxidantes e que fumar é péssimo para a saúde - ainda que os anúncios da Malboro, que ainda davam quando eu era criança, eram qualquer coisa de extremamente estético...um grito de rebeldia que tanto nos faz falta!
Na realidade somos os verdadeiros ninjas da informação!, nunca jamais uma geração foi tão bem informada sobre o aquecimento global ou sobre onde ir buscar vitamina B12 se quisermos ser vegetarianos, ainda que pouca gente faça seja o que for em relação ao aquecimento global ou em relação aos animaizinhos que todos adoramos ver em vídeos amorosos (pois, essa vaquinha deve ter sido linchada logo a seguir, mas 'who cares'?). Sim, também enfiamos expressões em inglês em qualquer frase como ninguém. A minha avó era mais francês, mas mau.
É verdade também que qualquer um agora é fotógrafo, basta ter um iPhone porreiro, e toda a gente vai ficar a saber onde estamos e o que estamos a comer antes sequer de nós mesmos percebermos se estamos felizes com aquilo. Normalmente nem estamos...mas não paramos para pensar nisso, dá muito trabalho.
Também somos todos gurus do fitness e yoga, mas não deixamos de engordar como texugos. Até ganhamos aqueles queijinhos no Trivial Pursuit que a nossa mãe já "não foi a tempo", embora a mãe saiba quem escreveu o Hino Nacional e nós não, mas que interessa isso 'anyway'...? Entretanto já decorei a resposta.

Somos imbecis porque nos tratam como imbecis. E somos imbecis, justamente, porque estamos rodeados de imbecilidade e acabamos por aceitar.
Antigamente, ouvi eu esta conversa há poucos dias, havia trabalho. Saía-se de um sítio e ia-se para outro. Antigamente as competências eram valorizadas - se se tinha aprendido a arte de sapateiro, sapateiro ser-se-ia. Mas hoje para se ser sapateiro é preciso também dominar o Excel e, já agora, ser-se fluente em Ucraniano para cair na graça de um qualquer mercado internacional manhoso. Isto para não falar nas tendências.... ai, as tendências... se não estiveres dentro das tendências da moda do dito sapato, mais vale desistir. Mas também é certo que ninguém quer sapateiro, porque nos educaram a querer ser, no mínimo, designer de sapatos!, e não sapateiro.

Somos imbecis porque, entretanto, com tanto tempo livre para o sermos, andamos sempre agarrados aos telemóveis para ver o que se passa nas redes sociais, mesmo quando estamos à mesa com a família. É difícil construir duas frases para falar sobre o nosso dia ou responder à pergunta "Como estás"? A sério, dá muito trabalho, deixem-nos descansar a vista sobre o vestido da Melania Trump, porque essas trivialidades dão cabo de nós.
E eu falo no plural só para não entrar em conflitos alheios, mas na realidade só me apetece pegar em cada um dos vossos telemóveis e atirá-los à parede. Conflito montado.
Somos imbecis porque continuamos a viver na casa dos pais porque não temos um trabalho (porque vários alguéns já nos passaram o tal atestado de imbecilidade) ou porque não nos apetece gastar aquele dinheiro que irá para um par de ténis maravilhoso todos os meses em vez de ir para a renda.
Eu cá acho fundamental arranjarmos maneira de gastar menos água, por exemplo, e conseguir comprar também os tais ténis. Mas isso sou eu, desafios pessoais.

Tenho pena da minha geração que tem tantas capacidade como qualquer outra, ou até mais, mas que se deixou alhear pelo conformismo e comodismo criado pelo facilitismo de ter as coisas sem a magia de ter de lutar por elas, por um lado, e, por outro, pela sensação de não podermos ser nós a fazê-lo na qual já nos embrulharam.

Quem paga uma renda, paga-a sabe Deus como. E não há espaço para mais extravagâncias. Ténis? Pede à mãe!
E não se divide a renda com mais ninguém porque já ninguém tem paciência sequer para aturar outra pessoa ao lado. E não me refiro à mãe como pessoa ao lado. O telemóvel tem lugar cativo na almofada vizinha.

Estão-nos a tirar a capacidade de sermos independentes e a capacidade de sermos pessoas de razão. Desvalorizado o nosso individual, também se estatela a ambição de construir seja o que for em comunhão.

Somos uma geração criada para ser bem sucedida, mas ultrapassada pelos caprichosos da velocidade da informação. Quanto mais informação temos disponível, maiores são as exigências. E no cansaço de lidarmos com elas, deixamos descansar a nossa alma em skrols infinitos e vídeos de gatinhos, porque a vida real já não se assemelha a qualquer musa ou poesia onde nos queiramos perder de amores.

Somos a geração sem geração, porque ainda nem deixámos de ser filhos para sermos pais.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Filipe

Filipe, que significa "amigo dos cavalos", "o que gosta de cavalos", do grego Phílippos, composto pela união dos elementos phílos, que significa "amigo" e híppos, que quer dizer "cavalo".

Há muitas pessoas com o nome Filipe e que nem por isso são amigas de cavalos. Talvez porque nunca lhes deram um, não sei. Eu sou Ana e também gosto de cavalos. E também me podem dar um. Ponho-o na varanda.
Enfim, a origem do nome não tem muita importância, porque tenho a certeza que ao meu irmão não foi dado o nome Filipe por causa de cavalos. E este texto é sobre o meu irmão e jamais sobre cavalos. Acho eu... 
Aos meus mais habituais leitores, não preciso pedir perdão pela repetição. Saberão, tão bem quanto eu, a importância de preservar a memória e até a melancolia e resignação pelas coisas que nunca vão mudar. 
Existindo, ou não, uma continuação da alma que segue caminho rumo a novas vidas, quiçá mais frutíferas, ele faz falta nesta. Na minha, e em muitas outras. Até nas vidas daqueles que nunca o conheceram. Pelo menos daqueles que já se cansaram de me ouvir falar sobre ele sem a possibilidade de o ver. 

Estive a fazer um exercício de recreação - imaginei-o no meu ultimo aniversário, com vontade de beber, com vontade de contestar, com vontade de pertencer ao mundo de todos. Imaginei-o a dançar comigo, a pegar-me ao colo e a dar-me carolos. Imaginei-o com calças de ganga largas e casaco castanho, não sei porquê. Imaginei-o com um copo na mão, a falar comigo e com o Daniel, um não-fumador e o outro a fazer bolas de fumo. Imaginei-os aos dois a rir. Imaginei-os aos dois absolutamente firmes em todas as diferenças que tinham e igualmente firmes no amor que sentiam um pelo outro, e por mim. E quis tirar uma fotografia. Queria tanto ter tirado essa fotografia. Queria tanto ter publicado qualquer coisa como "very proud sister of two", assim muito pouco na língua de Camões, mas mais na língua universal. Queria esse cliché. Mas parecendo cliché, eles eram absolutamente exclusivos para mim. Eram e são.

Há quem diga que família são aqueles que escolhemos. Interessante, eu escolheria exatamente a que recebi. Não por serem magnanimamente fantásticos, mas por serem aqueles que sempre senti como meus, inteiramente meus. E existe qualquer coisa de petulante naquilo que é tido como nosso, e os meus irmãos são os melhores, mesmo sendo pessoas extraordinariamente comuns.

Já lá vão demasiados anos a tentar envelhecê-lo, mas sem sucesso. Vejo-o sempre da mesma forma, sem rugas e sem barriga. Imagino-o sem cabelo, sim, mas isso já era habitual. Aliás, era eu quem lho rapava. Um dia fiz-lhe um lanho, mas ele nem se queixou, "Está óptimo!", e lá ia ele comprar 'A Bola' ou fazer 'uma sande d'atuuuum' para acompanhar. Ficava eu a saber e o resto dos vizinhos também, porque fazia questão de gritar. 
Num cômputo geral, era um tipo desalinhado, impulsivo e a vários kilómetros à hora. Quando tinha noção de certas regras de etiqueta, era quando fazia pior. Não consigo contar as vezes que tive de lhe dar cotoveladas para se calar ou para se compor. (Aquela piada sobre as brasileiras, Filipe, em frente aos nosso primos brasileiros, Filipe...)
Embora tenha pedido, mais tarde, conselhos à mãe porque queria 'fazer parte do clã' e comportar-se como qualquer outra pessoa tida como 'normal', acho que encontrou seus semelhantes e foi feliz antes de se 'normalizar'. A vida e a inteligência superam qualquer vestígio de formatação.

E, na realidade, é de um 'louco' que todas as famílias precisam. Ainda que, pensando melhor, ele não era louco, era apenas muito jovem.
E são as coisas mais estúpidas que nos vamos lembrando, são coisas pouco poéticas, pouco intelectualizadas, apenas coisas, apenas momentos, mas que ressoam por anos como grandes narrativas. 
E não existe cavalo nenhum nesta história. Até seria giro haver um cavalo! Mas existe o amigo. Porque só um amigo diria "Se não fosses minha irmã, apaixonava-me por ti". E esta foi a última coisa que ele me disse. Pelo menos de forma direta, porque ainda me foi devolvido um livro, quase tido como perdido, dizendo "Este livro só poderia voltar para ti. Ele gostava tanto de ti". E são estas coisas que vamos alinhado numa lista que pregamos na parede da mente e que nos lembram que, apesar de tudo, somos especiais para alguém. E que, apesar de tudo, só o pó nos separa, mas nunca a sinergia, aquele momento em que o todo é maior que a soma das partes.

E talvez me continue a dizer outras coisas, mas demorámos tanto tempo a conseguir sinal satélite!, será que devemos esperar conseguir outros sinais agora? Demorámos tantos anos a depurar tantas técnicas e sabedorias, haveríamos de ter, já, canal aberto com o maior dos Mistérios? A nossa avó diria que a verdade já está em nós, afirmação muito cristã, mas pouco satisfatória. 

Agora, inevitavelmente, imagino-o com cavalos. Calças de ganga, casaco castanho, com um copo na mão, a lidar com cavalos. Não faz sentido? É um cowboy! 

Signed: very proud sister of a cowboy. No, not one, two! 



quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

2016 em Revista

Eu sei que ainda não chegámos ao final do ano e que ainda podem vir a explodir umas quantas bombas e vir a morrer umas quantas celebridades nestes 23 dias, mas, como todos os anos, aqui fica a revisão do ano de 2016 (perspectiva pessoal, é claro, ainda que possa admitir ter tido uns quantos contactos extra-terrestres).
Janeiro: Morreu David Bowie. Tenho pena, claro que sim, oxalá vivêssemos todos até aos 100 anos, com ou sem talento musical. Mas tenho mais pena ainda pelos meus primos ‘cotas’ que viveram os seus mais tórridos romances ao som de Bowie. É que eles ficaram mesmo tristes! E eu cá ainda tenho o Eddie Vedder vivinho da silva. Falamos daqui a uns anos, então.
Mais, Leonardo DiCaprio finalmente ganhou o Óscar! Epa, vá lá, já não era sem tempo! Acho que, mesmo tendo ganho o Óscar por um papel em que a competência mais extrema era rastejar e grunhir, mereceu-o por todos os outros papéis interpretados. Até o do Titanic! Sim, o do Titanic! Ou acham que é fácil embater em Icebergs ao som de Celine Dion? É de cortar os pulsos, malta…
Fevereiro: Não me lembro bem. Acho que estive de ressaca vários dias pelo meu 30º aniversário. Mas ecoava lá ao fundo que Marcelo Rebelo de Sousa havia sido eleito Presidente da República e que a tomada de posse seria ao som de Anselmo Ralph. Marcelo, “partes a loiça toda, o nosso amor não acaba aqui.”
E fiquei também a saber que morreu Umberto Eco. Qual o meu espanto! É que pensava-o morto há muito tempo. Desculpem, mas é verdade. Quando li “O nome da Rosa”, lembro-me de o julgar do século XIX. E pronto, já não vou a tempo de lhe dizer que “O Pêndulo de Foucault” é absolutamente chato (tenho a certeza que, com esta, comprei mais uma briga com um primo qualquer).   
Março: Explosão no aeroporto de Bruxelas faz umas quantas dezenas de mortos. Como falar sobre isto sem ser capturada pela ISIS e sem ser degolada com uma faca de manteiga? Enfim, é melhor, então, não falar muito. Só os mando para o raio que os parta em 82 pedaços, sem direito a virgens. Traduzam lá isto! E entrego para Deus... 
Mas no meio disto tudo, o que se passa na Síria? 
Segundo, Coreia do Norte lança 4 mísseis de curto alcance no mar da sua costa leste, ignorando a ONU. Bom… brincando à batalha naval? Julgava que num jogo de tabuleiro ambos os competidores deviam aceitar ser participantes. 
Abril: Mais um: Prince. Também não era fã. Mas tão pouco importam os meus gostos musicais - lá se foi mais uma alma. Contudo, mais angustiante ainda foi ouvir as teorias de conspiração que juntam Bowie e Prince numa demanda pelo anonimato tardio e enriquecimento através da própria morte (como se lhes faltasse alguma coisa). Ah, sim, há muita gente que acha que estão ambos de mãos dadas nas ilhas Faroé a beber Mojitos (sim, eu sei que ilhas Faroé e Mojitos não combinam) e que na realidade não morreram. Irra, vão mas é passear o cão.
Maio: O Benfica sagra-se tri-campeão nacional. E acho que com esta o meu texto ganha outra vida, não é? Querem vocês lá saber do Bowie e dos atentados, desde que o Benfica seja campeão. E não, eu não sou do Sporting. E também não só da Académica. 
Junho: Atentando numa discoteca gay-friendly faz dezenas de mortos, em Orlando, e outro atentado em Istambul mata mais umas quantas. O mundo insiste em dar à luz vários idiotas que perpetuam o terror em nome de qualquer coisa que nem sequer é Deus. E no seguimento, levamos com o Brexit, com chá e scones a acompanhar como diplomacia. Por mim tudo bem, quero ver agora é quem vos vai lavar as ’toilets’ e que quem vos vai levar os ’scrambled eggs’ à boca. Hey...com isto não quero dizer que não haja outras funções a serem desempenhadas por emigrantes na UK…. chill. 
Mas no meio disto tudo, o que se passa na Síria? 
Julho: Um camião embate propositadamente na multidão presente na celebração do Dia da Bastilha, em Nice, fazendo pelo menos 84 mortos e mais de uma centena de feridos. Vale a pena ainda dizer que a Seleção Nacional foi campeã Europeia? Acho que não. E a Síria? 
Agosto: Incêndios e mais incêndios. Ou são interesses económicos ou são maluquinhos da pinha que decidem lançar fogo às nossas florestas. Interesses económicos, interesses por mediatismo, ou puro e ingénuo interesse em observar o fogo a flagrar. Qualquer que seja o interesse, façam da vossa lareira o vosso colchão, se faz favor. 
Setembro: O ex-presidente Lula foi denunciado pelo Ministério Público Federal sob os crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no âmbito da Lava Jato. Eu não percebo muito de política, mas tenho em mim, pelos coisas que li e vi, que qualquer partidário do PT, em tempos muito idos e quando eram bastante jovens, até que tinha lá os seus ideias revolucionários e os seus ímpetos socialistas. Porquê que, passados uns anos, todos este tipos se deixam levar por esquemas de corrupção? É aborrecimento? É falta de sexo? (pardon my french)… Tomara não envelhecer nunca!
Novembro: Finalmente chegou o mês de Trump. Depois de tanto marketing à volta dele próprio, das suas capacidades e inúmeras virtudes, embora fascista, xenófobo e sexista, conseguiu eleger-se. Mais o mais preocupante, parece-me agora a mim, nem é o próprio Trump, mas a multitúde de pessoas que o segue. Porque Trump é só um. Quem votou nele são milhares. E, parece-me a mim que, apesar de não ser flor que se cheire, todos os seus discursos radicais eram puro marketing, porque, esperto é ele, sabia o que seu povo idiota queria ouvir. E de repente já mudou de máscara, de repente já faz um bocadinho mais sentido (mas só um bocadinho) e quem o elegeu, ignorantes como são, lá o continuarão a seguir, independentemente do que diga. Mas pensando bem, e os outros? Democracia é uma falácia, comunismo um martírio, anarquia uma desordem, e qualquer homem ou mulher no poder... um enlace com a corrupção. Em quem votaria eu? Eu cá, se pudesse assim ser, votava no Fidel Castro. 
Ah… também morreu? Pronto, voto em branco. 

domingo, 3 de maio de 2015

Aquilo que nos define

Aquilo que nos define pode ser muita coisa. Mas também pode ser todo um nada.
Varia consoante as luas. Varia consoante aquilo que pensamos sobre nós mesmos e como nos sentimos. Varia com os anos e com a experiência. Varia com as pessoas que cruzam a nossa vida e nos marcam. Também varia consoante quem nos olha e pensa que sabe aquilo que nos define.

Já por algumas vezes me questionaram porque trabalho, hoje em dia, num departamento administrativo, a ganhar pouco mais que o ordenado mínimo (o que já não é assim tão mau), a fazer tudo menos aquilo para o qual estudei.
Há algumas respostas possíveis para isso. Um delas é a mais trivial - 'Era o que havia. Foi o que consegui. Já ouviram falar em crise?'
Outra resposta pode ser - 'Aquilo que eu estudei não me define totalmente. Posso fazer outras coisas. E até gostar do que estou a fazer neste momento'.

Porque aquilo que nos define é o motor que nos faz avançar, seja para Este ou Oeste. Aquilo que nos define não é um conceito rotulado que nos espetam na testa, a partir do momento em que saímos duma Universidade: agora sou arquitecto; agora sou designer; agora sou médico; agora sou jornalista.
Até porque quando entramos numa Universidade, muitos são os sonhos em que acreditamos e que logo percebemos, afinal, serem apenas fantasias. Ainda somos muito novos, mal sabemos quem somos, muito menos saberemos para o quê fomos talhados.

Aquilo que nos define de melhor é a vontade de continuar. De usar todas as ferramentas que temos disponíveis para ir subjugando o tédio, a inércia e os sonhos por concretizar. Aquilo que nos define de melhor é não ficarmos parados, a receber mesada dos pais, à espera que o trabalho de sonho avance sobre nós, sem que façamos alguma coisa para avançar até ele.

Aquilo que nos define de pior é não avançar. E negar qualquer possibilidade que manche uma qualquer reputação a manter.
Aquilo que nos define de pior é insistir em esperar quimeras sem entender que essa quimera só é merecida se nos habituarmos a crescer. Se nos habituarmos à ideia, até, que crescer dói um bocado.

O meu curso define-me num determinado momento da minha vida. E as referências mais importantes ficaram. Aprendi muita coisa. Aprendi muita coisa que, inclusivamente, posso usar neste mesmo departamento. Por nada é linear. As formas não são estanques, as próprias funções também não, se soubermos integrar todos os mundos que nos interessam exactamente naquilo que estamos a fazer, e...expandir a bolha.

Aquilo que nos define nunca há-de ser um curso, mas aquilo que fazemos, e como fazemos, para (sobre)viver. E ir subjugando o tédio, a inércia e os sonhos por concretizar...


sábado, 31 de janeiro de 2015

Vão-se os dedos, ficam os anéis.



Costuma dizer-se o contrário, mas desta vez troco-lhe as voltas - São os dedos que vão, e não os anéis. A matéria sem alma permanece. Com alguns achaques e rachaduras, mas nada que um habilidoso não consiga tratar. E por cá fica grandes temporadas, até que um dia, talvez, seja atirada a um canto e devorada pela terra. Mas apenas se esta a aceitar - se for do tal do 'biodegradável' que todos adoramos. 
Mas nós gostamos ainda mais de coleccionar, de guardar, de manter e de adorar os nossos objetos. Principalmente quando esses objetos formam parte de uma árvore genealógica familiar qualquer.
Bom, não de uma qualquer, mas da nossa. E então cuidamos, nutrimos, mimamos, todos estes pertences. E nunca, jamais, os entregaríamos a essa draga devoradora.
Como se... com o deixar permanecer o pouco intruso (já faz parte da mobília! Literalmente...) nos transportasse a todas as pessoas que fizeram parte dele. Ou foi ele que fez parte delas...!? Mas tanto faz.
A cadeira, esta como outra qualquer, é, talvez, um dos símbolos mais petulantes e agressivos que existe. Porque é para uma cadeira que se olha quando falta alguém. É essa cadeira vazia que nos atormenta. 
A janela pode estar vaga, o alpendre também. Até a cama fica vazia. Mas a cadeira, junto à mesa, onde se reúnem os comensais faladores... essa... lembra-nos mais daquilo que gostaríamos esquecer - A Ausência.
Julgo que não há nada mais belo que uma cadeira. Uma cadeira bem talhada. Uma cadeira feita para embelezar, para servir e para durar. Mas julgo, também, que não há nada mais triste que uma cadeira. Quando ela se vê vazia por tempo eterno.
Podem sentar-se muitas outras pessoas nela. Mas ela nunca vai deixar de ser a cadeira que, durante muitos anos, representou a presença de alguém que não mais volta. Mas, no entanto, esse alguém nunca representaria a cadeira. A cadeira é apenas... uma cadeira.

Ao meu irmão, ao meu pai e à minha avó. Que deixaram cadeiras vazias, e que hão-de durar até que alguém lhes ateie fogo.